Por: Pascal Michiels
Em parceria com: https://ciclismoatual.com
O livro comemorativo da
Federação Portuguesa de Ciclismo acumula imprecisões graves, distorções
históricas e omissões de figuras centrais da modalidade, levantando dúvidas
sobre rigor editorial e prioridades institucionais.
Segundo uma publicação nas
redes sociais de José Carlos Gomes, que denuncia com exactidão factos que
constam do livro, como o de Afonso Eulálio venceu a 17.ª etapa da Volta a
Itália em 2025. José Azevedo conquistou, como diretor desportivo, uma Volta a Espanha
ao serviço da Katusha. Rui Costa foi campeão nacional de fundo em 2010, 2011 e
2012. João Almeida terminou o Giro de 2021 no terceiro lugar e sagrou-se
campeão nacional de scratch em juniores no mesmo ano em que foi sétimo
classificado na Volta a França do Futuro, em sub-23. David Rosa terminou a
carreira após os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Ricardo Marinheiro foi
vice-campeão do mundo júnior de XCO em Anadia, em 2022.
Nenhuma destas afirmações
corresponde à verdade. Ainda assim, surgem apresentadas como factos consumados
no livro que a Federação Portuguesa de Ciclismo lançou esta semana para
assinalar os seus 125 anos de atividade. Trata-se, por isso, de uma obra que acaba
por corporizar, em formato impresso, dois conceitos muito em voga no espaço
digital, as fake news e as chamadas alucinações associadas a sistemas de
inteligência artificial.
Seria, no entanto, um erro
pensar que os exemplos acima esgotam o catálogo de lapsos factuais presentes em
“125 Anos na História do Ciclismo Português”. O leitor fica a saber que Nelson
Oliveira abandonou a prova de fundo dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro por
se ressentir do esforço do contrarrelógio. Na realidade, a prova de fundo
antecedeu o contrarrelógio e o ciclista bairradino desistiu na sequência de uma
queda. O livro afirma ainda que o madison é uma prova disputada por equipas de
dois ou três ciclistas, que Acácio da Silva vestiu a Camisola Rosa do Giro a 2
de maio numa edição, a de 1989, que apenas começou no dia 21, e que, nesse
mesmo ano, o transmontano perdeu a Camisola Amarela na Volta a França para Erik
Breukink, quando quem herdou a liderança foi, de facto, o norte-americano Greg
LeMond.
A sucessão de incongruências
continua com a indicação de que no Campeonato da Europa de pista de juniores de
2025 participou um ciclista de 23 anos. Pode parecer caricato, mas consta
também da narrativa que Lucas Lopes terminou no 20.º lugar da Taça das Nações,
uma competição exclusivamente por equipas, sem classificação individual.
Acresce ainda a informação errada de que a pista olímpica de BMX, em Sangalhos,
foi construída em 2013, quando a sua inauguração ocorreu apenas em 2019.
Estes exemplos não pretendem
ser exaustivos, mas são suficientemente ilustrativos do desleixo e da
ignorância que atravessam as 224 páginas da obra. Há ainda um problema que
ultrapassa o plano factual e entra diretamente no domínio da verdade histórica.
Os doze anos de presidência de Delmino Pereira, o período de maior sucesso
desportivo das seleções nacionais e aquele em que Portugal mais eventos
internacionais acolheu, são resumidos a um único parágrafo, deixando implícita
a ideia de que o dirigente se limitou a executar um plano herdado do seu
antecessor, Artur Lopes. Essa leitura é intelectualmente desonesta e colide
frontalmente com os factos.
Uma das secções mais difíceis
de justificar é a que elenca as 30 personalidades mais importantes do ciclismo
português. O critério parece ancorado numa visão datada, presa à década de
1990, e orientada para homenagens de conveniência.
É incompreensível que uma
lista desta natureza ignore o presidente mais medalhado da história da
Federação e um dos mais titulados de todo o desporto nacional, o dirigente
associativo que idealizou e construiu em Portugal uma das melhores corridas do
mundo, a mulher que organizou e dirigiu as provas de estrada de ciclismo e
paraciclismo em Jogos Olímpicos, o selecionador nacional que transformou a
mentalidade competitiva da seleção e foi campeão do mundo e medalhado olímpico,
o selecionador que converteu uma vertente residual num caso de sucesso
internacional, o empresário que abriu portas do ciclismo mundial a talentos
portugueses com campeões do mundo e vencedores de Grandes Voltas na sua
carteira, ou o português que começou como mecânico da seleção nacional, passou
pela gestão do World Tour e construiu uma carreira de topo como gestor
desportivo em equipas de primeira linha.
Não é necessário nomeá-los,
qualquer leitor com conhecimento mínimo da modalidade saberá identificá-los.
Num livro que se propõe fixar
a História do ciclismo português, é particularmente chocante a ausência de
referências a dois dos ciclistas nacionais com maior sucesso em provas
internacionais, José Martins e Tiago Machado. O primeiro foi oitavo classificado
na Volta a Espanha, 12.º na Volta a França, terceiro na Volta à Catalunha e
quarto na Volta à Suíça. Quantos ciclistas portugueses apresentam um palmarés
desta dimensão?
Tiago Machado foi, durante a
década de 2010, um dos ciclistas mais regulares do mundo em provas de uma
semana, com múltiplos top 10 e vários pódios em competições internacionais
desse perfil. Nelson Oliveira, recordista nacional de participações nas três
Grandes Voltas e de top 10 em Campeonatos do Mundo, além de detentor de dois
diplomas olímpicos, é também praticamente ignorado.
A evolução das vertentes de
BTT, pista, paraciclismo e BMX não é explicada nem contextualizada. Não existe
uma única linha dedicada à Volta a Portugal Feminina, e os feitos de Maria
Martins, uma verdadeira pioneira do ciclismo feminino português, não são
valorizados nem enquadrados no seu devido contexto histórico.
“Num tempo marcado pela
rapidez da informação e pelas novas tecnologias, acreditamos que um livro
continua a ser um instrumento único para preservar a memória, fixar a história
e garantir que ela não se perde”, afirmou o atual presidente da Federação Portuguesa
de Ciclismo, Cândido Barbosa, na nota de imprensa que acompanhou o lançamento
da obra. À luz do conteúdo apresentado, a declaração acaba por assumir um tom
involuntariamente irónico.
Resta, no entanto, uma
pergunta inevitável. Quantos milhares de euros custou à Federação este objeto
de mil trezentos e trinta gramas em formato de livro? A questão torna-se ainda
mais pertinente quando se recorda que, há pouco tempo, o próprio presidente
admitiu ter recorrido a um empréstimo bancário para assegurar a atividade
corrente da Federação.
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