Joaquim Agostinho morreu a 30 de Abril de 1984, 10 dias depois de uma queda na quinta etapa da 10.ª Volta ao Algarve
Por: Lusa/Evandro Delgado
Foto: AFP
A poucos minutos das 11h00
horas de 30 de Abril de 1984, dois cães surpreenderam Agostinho e o resto do
pelotão que lançava os 'sprinters'
na Avenida Infante de Sagres, a 300 metros da meta da quinta etapa da 10.ª
Volta ao Algarve. Com a camisola amarela, conquistada no 'crono' da véspera, o corredor natural de
Brejenjas, Torres Vedras, não evitou um dos animais e o grave acidente. O
melhor amigo do Homem acabaria por ser o arqui-inimigo letal do super-herói do
ciclismo português.
'Quim
Cambalhotas' como era conhecido,
devido as muitas quedas, caia pela enésima vez. Mas agora seria fatal. Após a
queda, Agostinho cruzou a linha de meta, amparado por dois colegas, e insistiu
em retirar-se para a pensão da equipa. Só mais tarde acedeu a uma ida ao
hospital de Loulé, mas a indisponibilidade da máquina de radiografias levou a
comitiva a Faro, onde chegou por volta das 13:00.
Foi-lhe diagnosticado uma
fratura do crânio com afundamento do osso parietal direito, e um coágulo que
era necessário retirar. Em Faro, não havia serviço de neurocirurgia, e
analisadas as opções, a viagem para Lisboa foi feita de ambulância porque a
burocracia necessária retardaria o helicóptero. Ao hospital de Santa Maria,
chegou demasiadamente tarde - entrou em coma perto de Alcácer do Sal, na
ambulância, e morreu dez dias depois de ser operado, manifestamente tarde face
à detecção do coágulo.
O antigo presidente da
Federação Portuguesa de Ciclismo, Artur Lopes, médico de profissão e então
seccionista do Sporting, destacou a série de acasos e o triste fim do "melhor corredor português de todos os tempos",
além dos "dramáticos" 10 dias em estado de coma.
"Primeiro,
foi a teimosia dele, a dizer que não era nada. Depois, a falta de condições nos
hospitais da região e a longa viagem para Lisboa. Aqueles dias no hospital
foram dramáticos, com toda a espécie de padres e bruxos a tentar uma visita
para o curarem", contou Lopes à Lusa.
De
humilde lavrador ao topo do ciclismo mundial
Duas rodas bastaram ao humilde
lavrador Joaquim Francisco Agostinho, natural de Brejenjas, Torres Vedras, para
ser imortalizado num busto, em plena subida ao cume do Alpe d'Huez, França,
após uma carreira de 17 anos de 'emigrante da
bicicleta'.
A partida fulgurante para a
profissão de corredor deu-se com tardios 25 anos, já depois do serviço militar
cumprido na então Lourenço Marques, mas qualquer obstáculo parecia transponível
ao quarto de seis irmãos de uma família de parcos recursos.
Na primeira época como
profissional, o 'Quim Cambalhotas',
como era tratado devido aos constantes tombos, espantou vários pelotões, com o
segundo lugar na Volta a Portugal1968, o 16.º nos Mundiais de Imola e a vitória
na Volta a São Paulo, cativando o francês e 'patrão'
de equipas Jean de Gribaldy, que contratou 'Tinô'.
Em 13 participações na 'Grande
Boucle', Agostinho alcançou oito classificações entre os 10 primeiros,
incluindo dois terceiros lugares e cinco vitórias em etapas, nomeadamente no
emblemático Alpe d'Huez, a 17ª tirada da corrida em 1979.
Na 14ª das 'empinadas' curvas até ao topo daquela
montanha alpina, uma das metas mais árduas de alcançar da Volta a França,
figura desde 2006 uma escultura em bronze do português, executada por Salter
Cid, enquanto a 17ª das 21 viragens ao longo dos 14 quilómetros de subida foi
batizada com o seu nome.
Após estrear-se nas estradas
gaulesas, em 1969, Agostinho venceu a primeira 'Portuguesa',
mas seria a sua primeira de duas desclassificações por doping, o mesmo
sucedendo em 1973, devido à 'maldita'
ritalina, um estimulante tolerado em França, num tempo em que os controlos
antidoping ainda não eram padronizados.
As vitórias legítimas na Volta
a Portugal aconteceram em 1970, 1971 e 1972, sempre com a camisola do Sporting
e treinador Manuel Graça, que desvalorizou o recurso a substâncias em
declarações à Lusa: "Ele tinha era que
tomar coisas para andar menos".
"Não
era ele que carregava nos pedais, eram os pedais que o empurravam",
contou Graça, referindo-se à energia de Agostinho e lembrando outra piada
habitual: "As curvas à Agostinho, feitas
a direito, ribanceira abaixo", devido à falta de técnica
inicial.
'Quim
Cambalhotas'
Em 1972, Agostinho sofreu uma
grave queda e uma primeira fratura do crânio na estreia na Vuelta, em que
lutava para ganhar. Foi na etapa para Tarragona, em que caiu, perdeu a consciência
e ficou a sangrar do parietal esquerdo. Foi a 05 de Maio e temeu-se o pior. Mas
recuperou a 10 de Maio foi autorizado a viajar para Lisboa. Exatamente doze
anos antes de morrer, por uma queda com muitas semelhanças.
Na Volta a Espanha, segundo lugar
de 1974, a escassos 11 segundos do espanhol Fuente, é o seu melhor resultado em
cinco presenças.
Em 1979, já com 36 anos e
depois de outro terrível acidente, conquistou Huez em mais uma edição do Tour,
deixando o francês Bernard Hinault e o holandês Joe Zoetmelk a mais de três
minutos de distância.
O conhecido diretor-desportivo
francês Raphael Geminiani comentou: "Pegas
no Agostinho e mandas dar-lhe uma demão de tinta pela carroçaria, que o motor
está como novo".
A idade e Ana Maria, mulher e
mãe dos dois filhos (Miguel e Ana Sofia) de Agostinho, forçaram-no a uma
retirada em 1982, para pôr fim às perigosas quedas e Agostinho pôde gozar
finalmente o autêntico 'jardim zoológico' construído
na vivenda de Ponte do Rol.
Porém, algumas dificuldades
financeiras recolocaram-no na estrada, onde, com 41 anos, caiu uma última vez,
por causa de um cão, com a camisola amarela da Volta ao Algarve, na manhã de 30
de Abril de 1984, vindo a morrer 10 dias depois, em Lisboa.
Era a última queda, de uma
longa, longa série que lhe deu a alcunha de 'Quim
Cambalhotas', logo no primeiro ano de profissional.
Praticamente, não havia prova em que não acabasse por cair um ar descontraído,
meio despreocupado a isso ajudava, bem como deficiências técnicas de quem
começou bastante tarde a correr em bicicleta de competição.
Quando já era VIP do Tour, o 'L'Equipe' apresentou um cartoon de
primeira página, com todos os favoritos. E como estava representado Agostinho?
Sentado no chão, a ver estrelas, bicicleta desconjuntada e ombro esfolado.
O seu funeral, entre a
Basílica da Estrela, onde o corpo esteve em câmara-ardente, e o cemitério da
Silveira (Torres Vedras), contou com milhares de pessoas ao longo do percurso,
que incluiu uma volta de honra no antigo Estádio José de Alvalade, expressando
a consternação pela morte e as circunstâncias que a envolveram.
Fonte: Sapo on-line
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