segunda-feira, 24 de julho de 2023

“O que Vingegaard ganhou em confiança não perdeu em timidez”


O perfil do ciclista dinamarquês, que bisou este domingo no Tour

 

Por: Lusa

Jonas Vingegaard cresceu em confiança para dominar a Volta a França, com a atitude cada vez mais agressiva na estrada a contrastar com o hermetismo e a simplicidade que não perdeu, apesar do crescente estatuto no pelotão.

Entusiasmante e espetacular na bicicleta, o dinamarquês de 26 anos é monótono, repetitivo e extremamente introvertido fora dela, num contraste gritante com o exuberante Tadej Pogacar (UAE Emirates), o seu 'vice' pelo segundo ano consecutivo e o grande favorito dos adeptos da modalidade, apaixonados pela espontaneidade do esloveno.

No entanto, nada há a apontar ao ciclista da Jumbo-Visma, que, apesar de não gostar da exposição a que os dois triunfos do Tour o obrigaram, é, no contacto direto, como a Lusa testemunhou no Gran Camiño (a corrida que escolheu para iniciar a temporada e que ganhou), uma pessoa extremamente educada, humilde e até sensível.

Jonas Vingegaard é um mistério: profundamente familiar - gravita em torno da mulher e da filha e dependente da sua equipa, a quem confia cegamente o seu destino, sem hesitar (ou questionar), transfigura-se na estrada, onde, nesta Volta a França, demonstrou um instinto canibal e evidenciou uma confiança não antes vista, embora, nos bastidores, se tivesse mantido tão discreto e hermético como sempre.

É nas montanhas, e não nos compromissos mediáticos ou nas redes sociais (palco predileto dos ciclistas da sua geração), que o delgado dinamarquês se sente bem, embora só as tenha descoberto tarde, numas férias familiares nos Alpes franceses, durante as quais chegou a aventurar-se no temível Galibier.

"Descobri a minha primeira subida aos 16 anos. Depois disso, percebi que não era nada mau", contou.

Nascido em 10 de dezembro de 1996 em Hillerslev, uma pequena aldeia piscatória de apenas 370 habitantes, inserida numa zona rural de gente humilde e trabalhadora na costa do Mar do Norte, o corredor da Jumbo-Visma experimentou várias modalidades antes de descobrir a bicicleta: andebol, natação, badminton e até futebol, mas a sua estatura diminuta impediu-o de fazer carreira naquele desporto.

Fervoroso adepto do Liverpool - o site especializado CyclingWeekly conta que já foi apanhado várias vezes em Anfield -, o miúdo louro e franzino descobriu a paixão pelo ciclismo aos 10 anos, quando a Volta à Dinamarca passou à sua porta.

 

Como tudo começou

 

Embora tenha sobressaído imediatamente num teste organizado pelo clube local para um grupo de crianças, e semanas depois tenha conquistado o primeiro pódio numa corrida, Vingegaard teve dificuldades em afirmar-se no panorama velocipédico nacional, porque o seu peso pluma (tem 1,75 metros e 60 quilos) era incompatível com as ventosas planícies dinamarquesas.

A ColoQuick CULT, uma equipa continental, reparou no seu potencial e contratou-o como estagiário em 2016, oferecendo-lhe, graças aos consistentes resultados, um contrato para a temporada seguinte. Mas a progressão de Vingegaard foi interrompida em maio de 2017, quando partiu o fémur numa queda grave na Volta aos Fiordes.

Sem poder andar de bicicleta, decidiu começar a trabalhar numa fábrica de processamento de peixe de Hanstholm, o porto dinamarquês que espreita o Báltico e de onde via partir os 'ferries' para as Ilhas Faroé.

"Gostava daquele trabalho mesmo tendo de acordar às cinco da manhã. Era relaxante e não tinha de pensar muito. Apenas tinha de anotar as encomendas de linguado e bacalhau, tratar dos recibos e das licitações. Não precisava de trabalhar, mas ainda não sabia se iria tornar-me ciclista profissional", explicou numa entrevista ao diário desportivo italiano 'Gazzetta dello Sport'.

Mesmo quando recuperou da lesão, Vingegaard continuou a trabalhar na fábrica. "Não é fácil madrugar para ir para a fábrica, passar oito horas sem descanso e, de tarde, outras quatro ou cinco sobre a bicicleta. Isso molda o caráter", notou.

O agora bicampeão da Volta a França absorveu dessa experiência e das origens humildes os seus principais traços de personalidade, aos quais se junta uma bondade reconhecida por colegas e adversários, como Pogacar, que o define como "um grande tipo".

Cerebral como poucos na estrada, nunca se desvia do plano traçado para si pela Jumbo-Visma , escolheu a dedo o seu calendário esta época (participou apenas em quatro provas antes do Tour e venceu três, perdendo apenas o Paris-Nice para o esloveno da UAE Emirates), é devoto às suas duas meninas, que o acompanharam todos os dias nesta 'Grande Boucle'.

Trine Hansen, que conheceu na ColoQuick CULT (era a responsável pelo marketing) e com quem casou em 2019, e Frida, a filha de quase três anos, são "tudo" para o dinamarquês, com a companheira a desempenhar um papel fundamental na sua carreira, que descolou quando foi descoberto pela Jumbo-Visma, depois de uma temporada de 2018 na qual venceu o contrarrelógio da Volta a França do Futuro, acumulou vários resultados no top 10 do escalão sub-23 e estabeleceu um novo recorde da ascensão ao Col de Rates durante um estágio.

"Jonas tem tendência para esconder as emoções, trabalhamos juntos para que ele se abra mais e para que não seja sempre eu a tomar as decisões", reconheceu a mulher responsável pela 'gestão de ansiedade' do camisola amarela, uma missão que divide com a Jumbo-Visma.

A equipa holandesa soube que tinha de agir quando Vingegaard cedeu à pressão na Volta a Polónia de 2019, um dia depois de se ter estreado a vencer no WorldTour e de ter subido à liderança da prova, na véspera da última etapa.

"Não estava preparado para a pressão, tanto da parte da equipa como de todo o ambiente e da imprensa", reconheceu após ter bloqueado mentalmente e caído 25 lugares na derradeira tirada.

A Jumbo-Visma trabalhou o psicológico de Vingegaard, deu-lhe tempo para crescer, levando à Vuelta'2020 para trabalhar para Primoz Roglic, de quem é amigo pessoal, e em 2021 viu a paciência retribuída com uma vitória numa etapa da Volta aos Emirados Árabes Unidos, logo no início da época, duas etapas e o triunfo na geral da Settimana Coppi e Bartali e o espantoso segundo lugar no Tour, ao qual chegou depois da retirada temporal de Tom Dumoulin.

Esse fantasma pareceu regressar quando o corredor simplesmente desapareceu, após a primeira vitória na Volta a França, com as notícias sobre uma possível depressão, desmentida pelo próprio, a multiplicarem-se durante meses.

Neste Tour, contudo, notou-se que a autoconfiança do dinamarquês, que é fã de Alberto Contador e dos irmãos Schleck, cresceu exponencialmente, tanto que até vai arriscar tentar uma surpreendente dobradinha, ao alinhar na Vuelta, entre 26 de agosto e 17 de setembro.

"Estou mais confiante e relaxado nesta situação e penso que essa é a maior diferença [em relação a 2022]", declarou antes de iniciar a última etapa da 110.ª edição da Volta a França, aquela que o conduziria até à segunda amarela final em Paris.

Fonte: Record on-line

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