É este sábado inaugurado o
novo troço que liga a baía dos Golfinhos, em Caxias, e a praia da Cruz
Quebrada. São dois quilómetros a juntar a tantos outros que quase tornam possível
ir da Expo a Cascais de bicicleta. O i percorreu paredão e estrada para
completar 42 quilómetros de passeio na Marginal.
Antes de nos fazermos à
estrada convém esclarecer que de ciclista, esta dupla tem apenas as memórias de
infância feitas de círculos pequenos no quintal da avó. Talvez por isso a ideia
de 40 quilómetros de bicicleta nos tenha feito optar pela versão elétrica que,
apesar de obrigar na mesma a um pedalar constante, dá um impulso extra à
velocidade e não obriga a um esforço contínuo.
Sabíamos que o terreno era
plano e que o dia era de sol. Mesmo assim, desenterrámos as luvas, os
corta-ventos e os cachecóis do armário – até porque qualquer sol de inverno é
ineficaz quando se circula de cara à mostra a uns 25 km/hora.
Antes de ligar o GPS do
relógio, confirmamos as horas. São 11h30 e estamos, literalmente, debaixo da
ponte Vasco da Gama, em pleno Parque das Nações. Seguimos com a premissa de
chegar a Cascais sempre com o rio e o mar do lado esquerdo, tentando fugir à
estrada e aos passeios, testando assim a rede de ciclovias que promete ligar no
futuro as duas localidades (e até chegar a Vila Franca de Xira).
O primeiro quilómetro e meio
acontece sem imprevistos, mas pode bem servir de amostra para o que vamos
encontrar: ainda agora começámos e já passámos, contas feitas por alto, por dez
corredores. E já que falamos de exercício físico, mesmo antes de chegar à Torre
Vasco da Gama, surge o primeiro parque de fitness. “É raro o dia que não venho
cá”, admite Rui, que pousou os sacos das compras para se sentar na ‘Leg Press’,
a máquina que permite desenvolver o músculo das pernas. Ser o único utilizador
deste espaço de fitness ao ar livre é caso raro. “Ao fim de semana quase que se
fazem filas”, conta. Não era o caso – fizemos o passeio numa terça-feira – o
que deu tempo de sobra a Rui para uma caminhada de ida e volta ao Oceanário,
com direito a lugar no circuito de ginástica antes de almoço.
Não querendo interferir com
o exercício alheio, voltamos a focar-nos no nosso, que depressa começa a tornar-se
mais exigente. Os próximos três quilómetros, ainda no perímetro da Expo, contam
com um corredor de árvores cujas raízes são mais fortes que o cimento que as
tenta tapar. Consequência: solavancos impróprios para ciclistas de primeira
viagem.
Passado o tormento, a
estátua do Gil surge quase como uma visão, a lembrar a mística de 1998. Um
grupo de miúdos ensaia a pose para a foto que a professora se prepara para
tirar. “Melancia” gritam, agarrados às pernas do boneco. “Está bom, vamos
embora”. A professora dá o mote e nós também acatamos a ordem.
Já com o Parque das Nações
pelas costas, segue-se a primeira prova de fogo, sem ciclovia, nem passeios
largos o suficiente para fugirmos à estrada. As obras em Marvila encurtaram o
espaço para os carros e as bicicletas também sofrem. Mas não há razão para
desespero: a seguir começa a verdadeira passadeira vermelha, com 3 quilómetros
de ciclovia quase até Santa Apolónia.
Apesar de sereno para o
rolamento da bicicleta, este curto percurso é talvez o mais desinteressante,
pelos contentores que tapam a vista para o Tejo do lado esquerdo. É também o
mais desconcertante, pela quantidade de pessoas que aproveita o abrigo dado
pelos viadutos para construírem casa improvisadas.
Dez quilómetros
Quase como se de um prémio
se tratasse, aos dez quilómetros já temos a Sé como ponto de referência, apesar
de ser o lado esquerdo da nossa viagem que nos faz desviar o olhar.
Atracado em Santa Apolónia
está o Costa Mediterrânea, de onde saem centenas de pessoas cheias de vontade
de conhecer Lisboa. Ainda bem que à sua espera têm uma fila de autocarros,
porque se tivessem de percorrer os próximos três quilómetros de bicicleta,
tinham que escolher entre dois obstáculos: os táxis da faixa de “Bus” ou os
turistas que chegaram mais cedo e já andam a aproveitar os passeios à beira-mar
– ou não estivéssemos a chegar ao Terreiro do Paço.
Com os pés quase no rio, os
turistas aproveitam as escadas que dão acesso à água como mesa, onde espalham a
pizza e as garrafas de vinho compradas nas proximidades. Se o cenário não é já
por si idílico, juntemos-lhe a banda sonora de Sting, com a “Shape of My Heart”
tocada a guitarra e bateria por uma dupla de músicos de rua.
Enquanto temos de dizer que
não a três tentativas de venda de “selfie sticks”, avistamos um casal de
namorados que, de mapa aberto, escolhe a próxima paragem. De frente para o
Tejo, levanta o braço e aponta para a direita. É esse também o nosso caminho.
Quem vê a Ribeira das Naus –
onde o difícil é escolher entre sentar na relva ou na escadaria com acesso ao
rio (ou, ainda mais difícil, entre a companhia de um Pisco Sour ou de um Tinto
de Verano vendidos no quiosque), não está preparado para o rally papper que é
atravessar o Cais do Sodré.
Apesar da cara de esforço
dos ciclistas em contornar o que resta das obras de requalificação, nada parece
incomodar os pele vermelha pouco habituados ao sol das esplanadas, mas que
insistem em investir em mais uma “pint” ao invés de num novo protetor 50+.
As esplanadas, assim como os
turistas, continuam, desta vez a partilhar mesa com os engravatados que
aproveitam as Docas para fazer almoços de negócios.
E aqui surge a primeira
grande novidade: um sinal que obriga a saltar do selim (uma boa notícia) e a
levar a bicicleta à mão (não tão boa notícia assim). Mas vá, são só 250 metros
e o GPS acaba de assinalar que já percorremos 15 quilómetros, mesmo no momento
em que passamos debaixo da ponte 25 de Abril. Ali, nem o barulho ensurdecedor
de carros e comboios a passar por cima das nossas cabeças parece incomodar a
dupla que aproveitar a hora de almoço para usar o Clube de Padel. Afinal, o
importante é não perder a bola e, no nosso caso, o equilíbrio.
Da ponte a Belém, a vista é
incrível. Ponto final. Nada entre a ciclovia e a margem a não ser bancos de
jardim aproveitados como sofá para dormir a sesta, apoio para fazer
alongamentos depois da corrida ou mesmo de mesa de trabalho, para quem não
larga o computador nem durante a hora de almoço. Alguém disse almoço? Está na
hora da pausa, até porque o GPS dá conta de quase meio caminho feito.
Vinte quilómetros
Das quatro rulotes de street
food, escolhemos uma de tostas e fruta: a combinação perfeita para dar uma
energia que só não esgota mais rápido porque temos um grupo a tocar funaná e a
tentar vender os cds da banda. “Doze músicas por dez euros. Bom negócio, não?”
Até seria, se não tivéssemos mais vinte quilómetros pela frente.
Do funaná às flautas de pan,
agora são os hits dos ABBA a servir de banda sonora às dezenas de chineses que
tentam apanhar a Torre de Belém do melhor ângulo. Contornamos meia dúzia deles
quase como numa gincana e, como estamos com tempo, decidimos contornar também a
Fundação Champalimaud – são mais alguns metros mas que valem a pena pelo
passeio bem perto do Tejo.
Ainda bem que o fizemos, porque
os quilómetros seguintes são de um vazio de paisagem, onde só podemos imaginar
um recinto cheio durante o festival Alive. Por excesso de imaginação ou falta
de jeito, a verdade é que nos vemos quase que encurralados e, por isso,
obrigados a levantar uma rede que não devia ser levantada – xiu, não digam a
ninguém – para passar para o passeio, seguindo assim o caminho indicado por um
grupo de companheiros de duas rodas.
Se agora são poucos os
ciclistas a acompanhar esta viagem, antecipa-se que, no futuro, venha quase a
ser preciso esperar na fila para entrar numa ciclovia. O governo vai pôr em
prática um Plano Nacional para a Promoção da Bicicleta para criar uma rede
nacional de ciclovias para servir deslocações de casa para a escola ou o
trabalho.
Em Lisboa, essa tarefa será
facilitada pela rede de partilha de bicicletas que começa a funcionar em Junho,
com 1410 bicicletas (940 elétricas e 470 convencionais) distribuídas por 140
estações espalhadas por toda a cidade. Mas enquanto isso não acontece, aproveitemos
os mais recentes dois quilómetros de ciclovia – entre a Baía dos Golfinhos, em
Caxias, e a praia da Cruz Quebrada – e que às 14 horas de um dia de semana são
quase só para nós. Quase, porque Lina e Eduardo não dão tréguas na caminhada
rápida que quase já se tornou um ritual diário. “Não é, mas vai passar a ser”,
garante Eduardo. Lina confessa que só começaram esta semana mais a sério. “Mas
como é que se chama? Marta? Está aqui prometido à Marta que a partir de hoje é
todos os dias”.
Cada dupla segue o seu
caminho e o nosso já vai em Paço de Arcos, onde damos graças por ser Janeiro e
dia de semana, visto que, segundo a sinalização, a circulação de bicicletas é
proibida entre as 9h e as 20h, de Abril a Outubro, e entre as 10h e as 17h aos
fins-de-semana de Novembro a Março. Depois deste entrave burocrático,
sentimo-nos de novo bem-vindos, já que até no chão está escrito que “O passeio
marítimo é para andar” e, no nosso caso, pedalar.
Trinta quilómetros
A viagem sempre à beira mar
quase faz esquecer os quilómetros que vão passando no GPS do relógio. Mas já
são mais de trinta quando chegamos à Marina de Oeiras.
Há um graffiti que nos
recebe e que, em letras garrafais, diz “Tu és a exceção”. No entanto, basta
olhar em volta para perceber que, afinal, somos a regra. Não há quem não passe
que não tenha um ar saudável ou que, pelo menos, trabalhe para isso. Nós
estamos de bicicleta, mas há quem prefira correr, andar de patins, skate
tradicional ou mesmo elétrico. Já os que preferem desportos de mar, aglomeram-se
na Praia de Carcavelos, onde vemos os primeiros surfistas do dia a sair da
água.
À porta do surf center que
dá apoio a quem é fã da modalidade, são dois os cartazes amarelos, cujos sinais
de proibido destoam de um cenário onde tudo parece funcionar sem regras. “Sete
mil beatas por minuto vão parar ao chão em Portugal”, lê-se no primeiro, mesmo
em cima do que alerta para a tendência cada vez mais comum de beber ao ar
livre. “O botellon não apoia o desporto na praia”, avisam e, de facto, não há
ninguém no areal interessado em empilhar garrafas vazias. Aqui o levantamento
do copo é trocado pelos passes de volley, os toques de futebol de praia e o vai
e vem da bola das raquetes.
Mesmo com tanto desporto à
mistura, nada fazia adivinhar que ao ciclismo iríamos ter que juntar exercícios
de musculação. Mais uma vez, por falta de jeito ou por distração, vimo-nos
encurralados numa saída que nos obrigou a subir um bom lance de escadas com a
bicicleta na mão. E estamos a falar de uma elétrica que, apesar de facilitar a
velocidade, pesa pelo menos mais cinco quilos do que uma convencional.
Valha-nos o senhor que fez uma pausa no passeio e deu uma ajuda a voltar a
terra firme.
A partir daqui, seguem-se
cinco quilómetros aborrecidos pela falta de ciclovias e consequente caminho
entre estrada e passeios. Com o alcatrão e os carros que vão passando, é fácil
perder a noção de espaço. Quando vislumbramos praia novamente, somos obrigados
a interromper a ida de um surfista para o mar. “Está na Praia da Poça”,
avisa-nos. Já orientados, paramos para beber água, numa das fontes disponíveis
e preparamos o caminho até ao final.
Continuamos à beira-mar, a
fintar esplanadas, turistas e runners até que, já na entrada de Cascais, somos
obrigados a voltar à estrada, mas aqui com sinalização para ciclistas.
Assim continuamos até chegar
a um cenário para o qual precisamos de uns segundos de habituação. Sim, porque
isto de passar de uma manhã a olhar para o Tejo e para o Atlântico para uma
Cascais ao fim da tarde, não é automático. Logo à entrada, perto da estação de
comboios, é preciso parar para relembrar as aulas de código e saber como se
comporta uma bicicleta na rotunda. E quando a memória não vai tão longe,
chama-se o instinto, que até agora tem funcionado.
Já quase de braços no ar em
sinal de vitória como nos lembramos de ver os camisola amarela a fazer na meta,
pedalamos gloriosos pelas ruas da vila até voltar a ver o mar. É na baía de
Cascais que tiramos finalmente não as duas, por precaução, mas uma das mãos do
volante, para um high five de quem ainda há pouco tempo estava na Expo. E como
o GPS marca 42 quilómetros quando nos venderam um passeio de quarenta,
decidimos transformar esses dois quilómetros em duas cervejas, já que o
champanhe a sair em jato é exclusivo de quem chega ao pódio. Além disso, duas
garrafas não conta como botellon, pois não?
Fonte: Jornal I
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