terça-feira, 28 de outubro de 2025

“Análise: Como nasceu o ciclismo e quando é que se tornou num desporto?”


Por: Carlos Silva

Em parceria com: https://ciclismoatual.com

O ciclismo que hoje conhecemos e amamos gira em torno da resistência e da perseverança, com o bónus da análise científica do desempenho e dos produtos de alta tecnologia. Mas nem sempre foi assim. O ciclismo não surgiu como um desporto plenamente formado ganhou forma à medida que tecnologia, cultura e ambição se cruzaram. Determinar “quando o ciclismo se tornou um desporto” significa identificar o momento em que pedalar por transporte ou diversão deu lugar à competição organizada. Esse ponto de viragem situa-se no final da década de 1860, quando promotores, jornais e pioneiros transformaram as novas bicicletas num espetáculo para o público. A partir daí, surgiram corridas dedicadas, entidades reguladoras e ciclistas especializados, que fizeram do ciclismo uma pedra basilar do desporto mundial.

Voltemos ao início. Vamos também responder a algumas das perguntas mais interessantes sobre o tema e abordar os momentos-chave da história da modalidade.

 

Das máquinas de correr às bicicletas

 

Antes de alguém prender um dorsal à camisola, a própria bicicleta teve de ser inventada, reinventada e tornada conduzível a alta velocidade. Em 1817, o inventor alemão Karl Drais apresentou a draisine, uma “máquina de correr” de duas rodas com direção, movida pelos pés do utilizador. Tinha já o perfil de uma bicicleta moderna, mas faltavam-lhe pedais e travões o impulso e a esperança faziam o resto.

O salto para o verdadeiro movimento a pedal surgiu em Paris, no início da década de 1860, quando a oficina Michaux e outros fabricantes aplicaram pedais à roda dianteira, dando origem à bicicleta de ferro e madeira conhecida como boneshaker.

A evolução seguinte foi a velocidade. Nas décadas de 1870 e 1880, as penny-farthings ou “bicicletas de roda alta” dominaram as estradas máquinas de transmissão direta, rápidas, mas perigosas, cujas enormes rodas dianteiras percorriam mais distância por volta. Eram rápidas, mas instáveis, e tornavam as corridas tão emocionantes quanto arriscadas, tanto para quem competia como para quem assistia.

O verdadeiro modelo da competição moderna chegou com a bicicleta “safety” de corrente, criada por John Kemp Starley em 1885, e pouco depois, com o pneu pneumático funcional de John Boyd Dunlop em 1888, que transformou o conforto e o controlo na estrada. Estas duas inovações tornaram as corridas de massas e as longas distâncias possíveis, em vez de quase serem uma garantia de acidentes. Hoje, é difícil imaginar como seria competir numa daquelas máquinas rudimentares.

 

As primeiras linhas de meta

 

Pergunta a um historiador qual é o “certificado de nascimento” do ciclismo competitivo, e é provável que recebas uma data: 31 de maio de 1868. Nesse dia, realizou-se uma corrida de 1.200 metros no Parque Saint-Cloud, em Paris, vencida pelo inglês James Moore - considerada a primeira prova organizada da história.

No ano seguinte, surgiu a primeira grande corrida entre cidades: Paris–Rouen, a 7 de novembro de 1869, promovida pelo Le Vélocipède Illustré. Moore venceu novamente, percorrendo 123 km em pouco mais de 10 horas, caminhando nas subidas mais íngremes e pedalando numa bicicleta com pedais fixos na roda dianteira. Essa transição, dos sprints em parques para as provas de resistência entre cidades, marcou o momento em que o ciclismo se tornou verdadeiramente um desporto.


A década de 1890 trouxe uma explosão de ambição. A Bordeaux–Paris (primeira edição em 1891) estendia-se por cerca de 560 km, com ritmo imposto por tandems e, mais tarde, por motos derny, para manter velocidades elevadas. No mesmo ano, a Paris–Brest–Paris ofereceu um desafio lendário de 1.200 km de ida e volta, que combinava tecnologia, publicidade e resistência humana. O seu primeiro vencedor, Charles Terront, usou pneus Michelin e tornou-se uma celebridade nacional, provando que os ciclistas podiam conquistar tanto as primeiras páginas dos jornais como as linhas de meta. Estas provas eram testes de produto e promoções mediáticas, tanto quanto competições, o que atraiu dinheiro, comunicação social e multidões.

 

Regras, recordes e o palco mundial

 

Um desporto amadurece quando estabelece padrões. Em 1893, o ciclismo de pista organizou os primeiros Campeonatos do Mundo reconhecidos, em Chicago, sob a égide da International Cycling Association, consolidando federações nacionais e títulos mundiais. Em 1900, nasceu a Union Cycliste Internationale (UCI), com o objetivo de unificar regras e supervisionar as várias disciplinas. Apenas três anos depois, Henri Desgrange e o jornal L’Auto criaram a Volta a França uma corrida concebida para vender jornais, mas que estabeleceu o modelo das Grandes Voltas que ainda hoje estruturam o calendário da modalidade.

Os cronómetros também ajudaram a definir o desporto. A 11 de maio de 1893, Desgrange estabeleceu o primeiro recorde oficial da hora, com 35,325 km no velódromo Buffalo, em Paris. A partir daí, o recorde da hora tornou-se o laboratório do ciclismo: à medida que o material melhorava, as distâncias aumentavam, e cada nova marca reflectia o estado da arte. Essa obsessão pública com a distância percorrida em 60 minutos ajudou a distinguir o ciclismo como desporto, separado do simples transporte.

 

Os primórdios do ciclismo

 

Os primeiros ciclistas competiam em bicicletas de uma só velocidade, com guiadores estreitos, pneus sólidos ou pneumáticos e travagem mínima. Na estrada, vestiam roupas de lã e couro, alimentavam-se com o que encontravam e enfrentavam estradas em péssimas condições, guiando-se à luz de lanternas. Nas pistas, as corridas de seis dias e as provas com motos de ritmo enchiam os velódromos, enquanto os clubes amadores desfilavam em uniforme e organizavam contrarrelógios para medir forças com vizinhos.

Os jornais funcionavam como promotores e árbitros, com cronómetros e juízes colocados em cafés que serviam também de pontos de controlo. Mesmo então, já havia debate sobre “tecnologia versus pureza”. A Volta a França proibiu o uso de desviadores até 1937, e quando finalmente foram autorizados, a velocidade e a estratégia mudaram da noite para o dia.

Nem todos os “primeiros” foram limpos. O uso de ritmo imposto por tandems, triplas ou motociclos dava às provas um ar de espetáculo, e certas “preparações” eram tão comuns que se tornaram parte do folclore, não do escândalo. Mesmo assim, o essencial já lá estava: ataques ao vento, fugas nas colinas e sprints finais a gramática básica do ciclismo competitivo.

 

A evolução tecnológica

 

Três marcos transformaram a bicicleta numa ferramenta de corrida: o quadro de segurança, o pneu pneumático e o desviador. A Rover de corrente de Starley trouxe estabilidade e previsibilidade, o pneu de Dunlop suavizou as estradas e aumentou a resistência, e o desviador depois de anos de resistência dos puristas entrou finalmente na Volta a França de 1937, permitindo mudar de relação sem desmontar.

O resultado foi uma revolução táctica: as subidas passaram a ser geridas por ritmo, as descidas aproveitadas com estratégia, e as corridas por etapas reimaginadas por completo. Um simples cabo mudou o ciclismo de sobrevivência para xadrez em movimento.

Em paralelo, o ciclismo de pista evoluiu com quadros de aço mais rígidos e motociclos de ritmo que ajudavam os sprinters a atingir velocidades impressionantes. As distâncias e as provas padronizadas, como as perseguições e corridas por pontos, criaram duelos repetíveis e reconhecíveis. Em todas as épocas, as discussões sobre material serviram também de publicidade, num ciclo contínuo entre fábricas e linhas de meta que fez do ciclismo um dos desportos mais avançados tecnologicamente desde o início.

 

Pioneiros e símbolos

 

James Moore, vencedor em Saint-Cloud (1868) e em Paris–Rouen (1869), ocupa um lugar lendário no mito fundador do ciclismo. O seu nome surge associado tanto aos primeiros sprints como à primeira corrida entre cidades, ligando o nascimento da organização das provas ao surgimento das primeiras figuras heróicas. Anos mais tarde, Maurice Garin, um ex-limpador de chaminés transformado em campeão, conquistou a vitória inaugural da Volta a França em 1903, provando que uma corrida por etapas podia prender a atenção de um país inteiro. Entre ambos, desenha-se o arco que levou o ciclismo de simples curiosidade a autêntica obsessão nacional em França.

Do outro lado do Atlântico, Marshall “Major” Taylor quebrou barreiras e recordes ao tornar-se campeão mundial de sprint em 1899, sendo o primeiro ciclista negro a alcançar tal feito, apesar da hostilidade e das proibições em várias regiões dos Estados Unidos. O seu sucesso e o racismo que enfrentou mostram como o auge inicial do ciclismo se cruzou com as lutas sociais da época, e como os circuitos europeus, por vezes, ofereciam oportunidades mais justas do que os americanos. A história de Taylor é, ao mesmo tempo, história do ciclismo e dos direitos civis, talvez ainda hoje sem o devido reconhecimento.

As mulheres transformaram o significado do ciclismo tanto quanto as suas práticas. A activista Susan B. Anthony afirmou celebremente: “Deixa-me dizer-te o que penso sobre a bicicleta. Penso que fez mais pela emancipação das mulheres do que qualquer outra coisa no mundo…”, uma frase que simbolizou a liberdade que a bicicleta de segurança trouxe às mulheres, permitindo-lhes deslocar-se pelas cidades sem acompanhamento. Poucos anos depois, Annie Londonderry tornou-se uma celebridade global ao dar a volta ao mundo de bicicleta, e em 1924, Alfonsina Strada alinhou à partida da Volta a Itália masculina, completando etapas lado a lado com os ciclistas mais duros da época. Estas façanhas redefiniram o papel da mulher no ciclismo e alargaram os limites do possível, embora o merecido reconhecimento feminino tenha demorado demasiadas décadas a chegar.

 

O poder dos jornais e dos promotores

 

O ciclismo não se tornou um desporto apenas porque havia corridas, mas porque os promotores aprenderam a vender o espectáculo. A Paris–Brest–Paris foi concebida por um jornal como um teste à fiabilidade das bicicletas e à resistência humana, e a Volta a França nasceu com um propósito claro: aumentar a tiragem do L’Auto.

Mesmo a Bordeaux–Paris deveu o seu prestígio inicial às regras de ritmo controlado, que transformaram uma maratona de ultradistância num drama que durava toda a noite. Em suma, a comunicação social não se limitou a relatar o ciclismo, foi ela própria quem o moldou. Essa sinergia fixou datas no calendário, criou heróis e atraiu patrocinadores tudo o que um desporto precisa para se tornar autossustentável, e até um negócio em si mesmo.

As entidades reguladoras encarregaram-se depois de transformar o caos em regras. O surgimento da UCI, em 1900, unificou regulamentos entre países e disciplinas, ligando clubes amadores a títulos mundiais. O ciclismo foi único nesse sentido: com os Campeonatos do Mundo de pista desde 1893 e a Volta a França na estrada desde 1903, tornou-se simultaneamente um espetáculo de estádio e um espetáculo ao ar livre. Essa dupla identidade continua a definir o encanto da modalidade, sobretudo na estrada, onde o desporto é tão acessível quanto possível.

 

Como era correr nos primórdios do ciclismo

 

Imagina uma partida antes do amanhecer, em frente a um café, com lanternas a balançar e ciclistas a murmurar entre si. De boné e camisolas de lã, avançavam na escuridão atrás de tandems que ditavam o ritmo, revezando-se na frente quando a estrada começava a subir e comendo à pressa nos pontos de controlo. Não havia carros de apoio os problemas mecânicos resolviam-se com ferramentas de bolso e muita teimosia.

Nas pistas, o ciclismo era um caldeirão de ruído, entre o zumbido das rodas e o toque do sino. Essa sensação explica por que o recorde da hora tinha tanta importância: condensava todas as variáveis num único número, claro e compreensível para o público, que podia assim discutir e comparar feitos. Quando Henri Desgrange estabeleceu a marca de 35,325 km, deu ao ciclismo uma régua com que ainda hoje se mede a grandeza.

Da mesma forma, a Volta a França ofereceu aos adeptos um mapa: seis longas etapas em 1903, mas um conceito simples um grande circuito onde, com o passar dos dias e das montanhas, o mais forte acabaria por prevalecer.

 

FAQ – Quando é que o ciclismo se tornou um desporto?

 

Então, quando é que o ciclismo se tornou um desporto? Aconteceu a 31 de maio de 1868, quando a corrida de Saint-Cloud colocou uma linha de meta e um cronómetro sobre duas rodas. E consolidou-se a 7 de novembro de 1869, quando a Paris–Rouen provou que as corridas de estrada podiam cativar o público durante um dia inteiro de esforço entre cidades. Em apenas uma geração, os Campeonatos do Mundo, as Grandes Voltas, as Clássicas e os registos oficiais tornaram o ciclismo inequivocamente um desporto organizado e institucional. A tecnologia e a cultura encontraram, finalmente, o impulso natural de competir.

“Compra uma bicicleta. Não te vais arrepender, se sobreviveres”, brincou Mark Twain sobre a era das bicicletas de roda alta. A frase é cómica, sim, mas traduz bem o risco e a adrenalina que atraíram multidões às primeiras corridas. Hoje, quando os quadros em carbono e as mudanças electrónicas parecem mundos distantes dos velocípedes primitivos, a essência mantém-se a mesma: duas rodas, um ciclista, a estrada, a natureza e a pergunta simples que deu origem ao ciclismo quem chega à meta em primeiro?

Quer a tua linha de meta seja um café, um bar, o topo de uma montanha ou simplesmente a tua casa, essa continua a ser a pergunta que mais importa, independentemente do teu nível.

Lê abaixo um resumo completo com todos os detalhes mais importantes sobre o ciclismo.

 

Quando começou o ciclismo organizado?

 

A maioria dos historiadores aponta o dia 31 de maio de 1868, no parque Saint-Cloud, em Paris, como a data da primeira corrida formal, seguida pela primeira prova de estrada entre cidades, Paris–Rouen, a 7 de novembro de 1869.

 

Quais foram as primeiras grandes corridas de ciclismo?

 

Entre os principais eventos do século XIX destacam-se Paris–Rouen (1869), Bordeaux–Paris (realizada pela primeira vez em 1891), Paris–Brest–Paris (1891) e, a partir de 1903, a Volta a França.

 

Que inovações tecnológicas iniciais tornaram as corridas possíveis?

 

A bicicleta de segurança (1885) e os pneus pneumáticos (1888) tornaram as provas de longa distância viáveis. A adoção do desviador, na Volta a França de 1937, transformou completamente as tácticas e a velocidade das corridas.

 

Quem foram os primeiros ciclistas de destaque?

 

James Moore (Saint-Cloud e Paris–Rouen), Charles Terront (primeiro vencedor da Paris–Brest–Paris), Maurice Garin (primeiro vencedor da Volta a França), Marshall “Major” Taylor (campeão mundial de sprint em 1899), Annie Londonderry (famosa por dar a volta ao mundo) e Alfonsina Strada (participante da Volta a Itália de 1924).

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