Por: Carlos Silva
Em parceria com: https://ciclismoatual.com
O ciclismo que hoje conhecemos
e amamos gira em torno da resistência e da perseverança, com o bónus da análise
científica do desempenho e dos produtos de alta tecnologia. Mas nem sempre foi
assim. O ciclismo não surgiu como um desporto plenamente formado ganhou forma à
medida que tecnologia, cultura e ambição se cruzaram. Determinar “quando o
ciclismo se tornou um desporto” significa identificar o momento em que pedalar
por transporte ou diversão deu lugar à competição organizada. Esse ponto de
viragem situa-se no final da década de 1860, quando promotores, jornais e
pioneiros transformaram as novas bicicletas num espetáculo para o público. A
partir daí, surgiram corridas dedicadas, entidades reguladoras e ciclistas
especializados, que fizeram do ciclismo uma pedra basilar do desporto mundial.
Voltemos ao início. Vamos
também responder a algumas das perguntas mais interessantes sobre o tema e
abordar os momentos-chave da história da modalidade.
Das
máquinas de correr às bicicletas
Antes de alguém prender um
dorsal à camisola, a própria bicicleta teve de ser inventada, reinventada e
tornada conduzível a alta velocidade. Em 1817, o inventor alemão Karl Drais
apresentou a draisine, uma “máquina de correr” de duas rodas com direção, movida
pelos pés do utilizador. Tinha já o perfil de uma bicicleta moderna, mas
faltavam-lhe pedais e travões o impulso e a esperança faziam o resto.
O salto para o verdadeiro
movimento a pedal surgiu em Paris, no início da década de 1860, quando a
oficina Michaux e outros fabricantes aplicaram pedais à roda dianteira, dando
origem à bicicleta de ferro e madeira conhecida como boneshaker.
A evolução seguinte foi a
velocidade. Nas décadas de 1870 e 1880, as penny-farthings ou “bicicletas de
roda alta” dominaram as estradas máquinas de transmissão direta, rápidas, mas
perigosas, cujas enormes rodas dianteiras percorriam mais distância por volta.
Eram rápidas, mas instáveis, e tornavam as corridas tão emocionantes quanto
arriscadas, tanto para quem competia como para quem assistia.
O verdadeiro modelo da
competição moderna chegou com a bicicleta “safety” de corrente, criada por John
Kemp Starley em 1885, e pouco depois, com o pneu pneumático funcional de John
Boyd Dunlop em 1888, que transformou o conforto e o controlo na estrada. Estas
duas inovações tornaram as corridas de massas e as longas distâncias possíveis,
em vez de quase serem uma garantia de acidentes. Hoje, é difícil imaginar como
seria competir numa daquelas máquinas rudimentares.
As
primeiras linhas de meta
Pergunta a um historiador qual
é o “certificado de nascimento” do ciclismo competitivo, e é provável que
recebas uma data: 31 de maio de 1868. Nesse dia, realizou-se uma corrida de
1.200 metros no Parque Saint-Cloud, em Paris, vencida pelo inglês James Moore -
considerada a primeira prova organizada da história.
No ano seguinte, surgiu a primeira grande corrida entre cidades: Paris–Rouen, a 7 de novembro de 1869, promovida pelo Le Vélocipède Illustré. Moore venceu novamente, percorrendo 123 km em pouco mais de 10 horas, caminhando nas subidas mais íngremes e pedalando numa bicicleta com pedais fixos na roda dianteira. Essa transição, dos sprints em parques para as provas de resistência entre cidades, marcou o momento em que o ciclismo se tornou verdadeiramente um desporto.
A década de 1890 trouxe uma
explosão de ambição. A Bordeaux–Paris (primeira edição em 1891) estendia-se por
cerca de 560 km, com ritmo imposto por tandems e, mais tarde, por motos derny,
para manter velocidades elevadas. No mesmo ano, a Paris–Brest–Paris ofereceu um
desafio lendário de 1.200 km de ida e volta, que combinava tecnologia,
publicidade e resistência humana. O seu primeiro vencedor, Charles Terront,
usou pneus Michelin e tornou-se uma celebridade nacional, provando que os
ciclistas podiam conquistar tanto as primeiras páginas dos jornais como as
linhas de meta. Estas provas eram testes de produto e promoções mediáticas,
tanto quanto competições, o que atraiu dinheiro, comunicação social e
multidões.
Regras,
recordes e o palco mundial
Um desporto amadurece quando
estabelece padrões. Em 1893, o ciclismo de pista organizou os primeiros
Campeonatos do Mundo reconhecidos, em Chicago, sob a égide da International
Cycling Association, consolidando federações nacionais e títulos mundiais. Em
1900, nasceu a Union Cycliste Internationale (UCI), com o objetivo de unificar
regras e supervisionar as várias disciplinas. Apenas três anos depois, Henri
Desgrange e o jornal L’Auto criaram a Volta a França uma corrida concebida para
vender jornais, mas que estabeleceu o modelo das Grandes Voltas que ainda hoje
estruturam o calendário da modalidade.
Os cronómetros também ajudaram
a definir o desporto. A 11 de maio de 1893, Desgrange estabeleceu o primeiro
recorde oficial da hora, com 35,325 km no velódromo Buffalo, em Paris. A partir
daí, o recorde da hora tornou-se o laboratório do ciclismo: à medida que o
material melhorava, as distâncias aumentavam, e cada nova marca reflectia o
estado da arte. Essa obsessão pública com a distância percorrida em 60 minutos
ajudou a distinguir o ciclismo como desporto, separado do simples transporte.
Os
primórdios do ciclismo
Os primeiros ciclistas
competiam em bicicletas de uma só velocidade, com guiadores estreitos, pneus
sólidos ou pneumáticos e travagem mínima. Na estrada, vestiam roupas de lã e
couro, alimentavam-se com o que encontravam e enfrentavam estradas em péssimas
condições, guiando-se à luz de lanternas. Nas pistas, as corridas de seis dias
e as provas com motos de ritmo enchiam os velódromos, enquanto os clubes
amadores desfilavam em uniforme e organizavam contrarrelógios para medir forças
com vizinhos.
Os jornais funcionavam como
promotores e árbitros, com cronómetros e juízes colocados em cafés que serviam
também de pontos de controlo. Mesmo então, já havia debate sobre “tecnologia
versus pureza”. A Volta a França proibiu o uso de desviadores até 1937, e
quando finalmente foram autorizados, a velocidade e a estratégia mudaram da
noite para o dia.
Nem todos os “primeiros” foram
limpos. O uso de ritmo imposto por tandems, triplas ou motociclos dava às
provas um ar de espetáculo, e certas “preparações” eram tão comuns que se
tornaram parte do folclore, não do escândalo. Mesmo assim, o essencial já lá
estava: ataques ao vento, fugas nas colinas e sprints finais a gramática básica
do ciclismo competitivo.
A
evolução tecnológica
Três marcos transformaram a
bicicleta numa ferramenta de corrida: o quadro de segurança, o pneu pneumático
e o desviador. A Rover de corrente de Starley trouxe estabilidade e
previsibilidade, o pneu de Dunlop suavizou as estradas e aumentou a resistência,
e o desviador depois de anos de resistência dos puristas entrou finalmente na
Volta a França de 1937, permitindo mudar de relação sem desmontar.
O resultado foi uma revolução
táctica: as subidas passaram a ser geridas por ritmo, as descidas aproveitadas
com estratégia, e as corridas por etapas reimaginadas por completo. Um simples
cabo mudou o ciclismo de sobrevivência para xadrez em movimento.
Em paralelo, o ciclismo de
pista evoluiu com quadros de aço mais rígidos e motociclos de ritmo que
ajudavam os sprinters a atingir velocidades impressionantes. As distâncias e as
provas padronizadas, como as perseguições e corridas por pontos, criaram duelos
repetíveis e reconhecíveis. Em todas as épocas, as discussões sobre material
serviram também de publicidade, num ciclo contínuo entre fábricas e linhas de
meta que fez do ciclismo um dos desportos mais avançados tecnologicamente desde
o início.
Pioneiros
e símbolos
James Moore, vencedor em
Saint-Cloud (1868) e em Paris–Rouen (1869), ocupa um lugar lendário no mito
fundador do ciclismo. O seu nome surge associado tanto aos primeiros sprints
como à primeira corrida entre cidades, ligando o nascimento da organização das
provas ao surgimento das primeiras figuras heróicas. Anos mais tarde, Maurice
Garin, um ex-limpador de chaminés transformado em campeão, conquistou a vitória
inaugural da Volta a França em 1903, provando que uma corrida por etapas podia
prender a atenção de um país inteiro. Entre ambos, desenha-se o arco que levou
o ciclismo de simples curiosidade a autêntica obsessão nacional em França.
Do outro lado do Atlântico,
Marshall “Major” Taylor quebrou barreiras e recordes ao tornar-se campeão
mundial de sprint em 1899, sendo o primeiro ciclista negro a alcançar tal
feito, apesar da hostilidade e das proibições em várias regiões dos Estados Unidos.
O seu sucesso e o racismo que enfrentou mostram como o auge inicial do ciclismo
se cruzou com as lutas sociais da época, e como os circuitos europeus, por
vezes, ofereciam oportunidades mais justas do que os americanos. A história de
Taylor é, ao mesmo tempo, história do ciclismo e dos direitos civis, talvez
ainda hoje sem o devido reconhecimento.
As mulheres transformaram o
significado do ciclismo tanto quanto as suas práticas. A activista Susan B.
Anthony afirmou celebremente: “Deixa-me dizer-te o que penso sobre a bicicleta.
Penso que fez mais pela emancipação das mulheres do que qualquer outra coisa no
mundo…”, uma frase que simbolizou a liberdade que a bicicleta de segurança
trouxe às mulheres, permitindo-lhes deslocar-se pelas cidades sem
acompanhamento. Poucos anos depois, Annie Londonderry tornou-se uma celebridade
global ao dar a volta ao mundo de bicicleta, e em 1924, Alfonsina Strada
alinhou à partida da Volta a Itália masculina, completando etapas lado a lado
com os ciclistas mais duros da época. Estas façanhas redefiniram o papel da
mulher no ciclismo e alargaram os limites do possível, embora o merecido
reconhecimento feminino tenha demorado demasiadas décadas a chegar.
O poder
dos jornais e dos promotores
O ciclismo não se tornou um
desporto apenas porque havia corridas, mas porque os promotores aprenderam a
vender o espectáculo. A Paris–Brest–Paris foi concebida por um jornal como um
teste à fiabilidade das bicicletas e à resistência humana, e a Volta a França
nasceu com um propósito claro: aumentar a tiragem do L’Auto.
Mesmo a Bordeaux–Paris deveu o
seu prestígio inicial às regras de ritmo controlado, que transformaram uma
maratona de ultradistância num drama que durava toda a noite. Em suma, a
comunicação social não se limitou a relatar o ciclismo, foi ela própria quem o
moldou. Essa sinergia fixou datas no calendário, criou heróis e atraiu
patrocinadores tudo o que um desporto precisa para se tornar autossustentável,
e até um negócio em si mesmo.
As entidades reguladoras
encarregaram-se depois de transformar o caos em regras. O surgimento da UCI, em
1900, unificou regulamentos entre países e disciplinas, ligando clubes amadores
a títulos mundiais. O ciclismo foi único nesse sentido: com os Campeonatos do
Mundo de pista desde 1893 e a Volta a França na estrada desde 1903, tornou-se
simultaneamente um espetáculo de estádio e um espetáculo ao ar livre. Essa
dupla identidade continua a definir o encanto da modalidade, sobretudo na
estrada, onde o desporto é tão acessível quanto possível.
Como era
correr nos primórdios do ciclismo
Imagina uma partida antes do
amanhecer, em frente a um café, com lanternas a balançar e ciclistas a murmurar
entre si. De boné e camisolas de lã, avançavam na escuridão atrás de tandems
que ditavam o ritmo, revezando-se na frente quando a estrada começava a subir e
comendo à pressa nos pontos de controlo. Não havia carros de apoio os problemas
mecânicos resolviam-se com ferramentas de bolso e muita teimosia.
Nas pistas, o ciclismo era um
caldeirão de ruído, entre o zumbido das rodas e o toque do sino. Essa sensação
explica por que o recorde da hora tinha tanta importância: condensava todas as
variáveis num único número, claro e compreensível para o público, que podia
assim discutir e comparar feitos. Quando Henri Desgrange estabeleceu a marca de
35,325 km, deu ao ciclismo uma régua com que ainda hoje se mede a grandeza.
Da mesma forma, a Volta a
França ofereceu aos adeptos um mapa: seis longas etapas em 1903, mas um
conceito simples um grande circuito onde, com o passar dos dias e das
montanhas, o mais forte acabaria por prevalecer.
FAQ –
Quando é que o ciclismo se tornou um desporto?
Então, quando é que o ciclismo
se tornou um desporto? Aconteceu a 31 de maio de 1868, quando a corrida de
Saint-Cloud colocou uma linha de meta e um cronómetro sobre duas rodas. E
consolidou-se a 7 de novembro de 1869, quando a Paris–Rouen provou que as corridas
de estrada podiam cativar o público durante um dia inteiro de esforço entre
cidades. Em apenas uma geração, os Campeonatos do Mundo, as Grandes Voltas, as
Clássicas e os registos oficiais tornaram o ciclismo inequivocamente um
desporto organizado e institucional. A tecnologia e a cultura encontraram,
finalmente, o impulso natural de competir.
“Compra uma bicicleta. Não te
vais arrepender, se sobreviveres”, brincou Mark Twain sobre a era das
bicicletas de roda alta. A frase é cómica, sim, mas traduz bem o risco e a
adrenalina que atraíram multidões às primeiras corridas. Hoje, quando os quadros
em carbono e as mudanças electrónicas parecem mundos distantes dos velocípedes
primitivos, a essência mantém-se a mesma: duas rodas, um ciclista, a estrada, a
natureza e a pergunta simples que deu origem ao ciclismo quem chega à meta em
primeiro?
Quer a tua linha de meta seja
um café, um bar, o topo de uma montanha ou simplesmente a tua casa, essa
continua a ser a pergunta que mais importa, independentemente do teu nível.
Lê abaixo um resumo completo
com todos os detalhes mais importantes sobre o ciclismo.
Quando
começou o ciclismo organizado?
A maioria dos historiadores
aponta o dia 31 de maio de 1868, no parque Saint-Cloud, em Paris, como a data
da primeira corrida formal, seguida pela primeira prova de estrada entre
cidades, Paris–Rouen, a 7 de novembro de 1869.
Quais
foram as primeiras grandes corridas de ciclismo?
Entre os principais eventos do
século XIX destacam-se Paris–Rouen (1869), Bordeaux–Paris (realizada pela
primeira vez em 1891), Paris–Brest–Paris (1891) e, a partir de 1903, a Volta a
França.
Que
inovações tecnológicas iniciais tornaram as corridas possíveis?
A bicicleta de segurança
(1885) e os pneus pneumáticos (1888) tornaram as provas de longa distância
viáveis. A adoção do desviador, na Volta a França de 1937, transformou
completamente as tácticas e a velocidade das corridas.
Quem
foram os primeiros ciclistas de destaque?
James Moore (Saint-Cloud e
Paris–Rouen), Charles Terront (primeiro vencedor da Paris–Brest–Paris), Maurice
Garin (primeiro vencedor da Volta a França), Marshall “Major” Taylor (campeão
mundial de sprint em 1899), Annie Londonderry (famosa por dar a volta ao mundo)
e Alfonsina Strada (participante da Volta a Itália de 1924).
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